terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Impressões de Viagem, por Nilo Dante
Impressões de Viagem
(Não morra antes)
Nilo Dante*
Pautas & Fontes reflete a jornada de Alfredo Herkenhoff através do fascinante universo que foi, um dia, a redação do Jornal do Brasil.
O relato é caudaloso e emocionado. Não se isenta da nostalgia. Mas passa ao largoda amargura, embora o autor tenha sido testemunha e vítima do naufrágio a que foi conduzido o antigo colosso da imprensa brasileira.
Herkenhoff não se aprofunda nas águas da debacle empresarial. Nem se detém na insensatez das causas ou no estelionato dos efeitos, ambos por demais conhecidos. Seu facho de luz prefere a galáxia infinita de um grande jornal (ainda que em declínio) e seus habitantes siderais.
Manejando habilmente o estilo anotações-de-repórter, o autor produz uma viagem voluptuosa. Não se obriga à cronologia. Embriaga-se na emoção. Ao fim da travessia, ancora seu turbilhão pessoal em profunda (e merecida) reverência aos dois colegas de profissão que mais o impressionaram: José Gonçalves Fontes e Oldemário Touguinhó.
Esse par de ases da reportagem surgiu anos dourados da mídia brasileira, que começou no big bang dos anos 50 e acabou nos anos 1980, durante o vendaval falimentar que atingiu o Jornal do Brasil. Na década de 1990, no rastro da estabilidade econômica trazida pelo fim da inflação, ampliou-se o poder aquisitivo da classe média e os jornais brasileiros alcançaram as maiores circulações da história. Por uma dessas contradições difíceis de explicar, aquilo funcionou como uma senha perversa para o mergulho das grandes circulações no despenhadeiro da rejeição, por motivos que se verá em instantes.
Fontes e Touguinhó descendem, em linha direta, dos grandes repórteres que marcaram os anos 40, 50 e 60. Vejo-os como dignos sucessores de Joel Silveira, Samuel Wainer, Rubem Braga, Caio Júlio César Vieira, Carlos Lacerda, Edmar Morel, David Násser (a estrela máxima da constelação), Ubiratan de Lemos, Luciano Carneiro, José Leal, Geraldo Romualdo da Silva e outros expoentes do ofício em que a memória não me socorre.
Você – como o próprio Herkenhoff se refere ao leitor – haverá de identificar várias faces de um caleidoscópio cintilante, a partir do antes mencionado estilo anotações-de-repórter.
A face mais comovente se encontra menos nas páginas que na alma do livro. No escancarado amor de Herkenhoff pela profissão. Na alegria vital com que sempre a exerceu - desde repórter novato, na extinta Última Hora, até secretário de Redação e cronista brilhante no Jornal do Brasil. Em numerosas ocasiões, pude testemunhar sua combatividade na atualização do jornal do dia seguinte que ele finalizava
admiravelmente na Secretaria da Noite.
Lembro bem do cenário porque tive o privilégio de conviver com Herkenhoff nas edições do JB que produzimos entre 2002 e 2003. Um curto tempo de promissão em que, com perdão da imodéstia, a circulação da “folha da Condessa” disparou 30% em um mês, dando-me — e ao Ricardo Boechat, que estava no comando da arrancada, ao Nelson Hoineff, ao Vicente Senna e ao Jacques Nogueira, artífices também daquela decolagem — a ilusão de que o jornal iria se livrar da tenda de oxigênio e arremeter,
enfim, rumo ao horizonte azul.
Amor pelo ofício do jornal! Alegria de exercê-lo com naturalidade e isenção, sob o
objetivo primordial do interesse do leitor – eis o supremo dogma da minha geração que
José Gonçalves Fontes, Oldemário Touguinhó e Alfredo Herkenhoff sempre souberam
honrar.
A escalada triunfal do Jornal do Brasil foi detonada na segunda metade da década
de 1950 - os tais anos dourados da mídia brasileira - em que tudo aconteceu: a célebre
reforma do Diário Carioca, o advento da televisão, o lançamento do jornal Última Hora
e da revista Manchete. Quem deu o disparo inicial foi o inesquecível Odylo Costa, filho,
um humanista de alta voltagem, católico e maranhense como a condessa Maurina
Pereira Carneiro, dona do jornal, nomeado diretor da redação em meados de 1956.
Odylo tinha 42 anos. Era um visionário que adorava jornal. Percebeu e teve a sabedoria
de absorver a renovação introduzida pelo grande Pompeu de Souza no Diário Carioca,
de onde pinçou alguns jovens de talento incomum como o Armando Nogueira, o
Evandro Carlos de Andrade, o José Ramos Tinhorão, o Ferreira Gullar e outros em que
a memória também não me socorre. Buscou nas artes do Amílcar de Castro um desenho
simples e eficiente para o novo jornal que esculpiu com desmedida paixão. (Até então,
exceto pela Última Hora que importou notáveis artistas da Argentina, os jornais
brasileiros não eram diagramados formalmente nem tinham desenho algum. Hoje, têm
desenho demais.)
Odylo ficou uns três anos na direção do Jornal do Brasil, sucedido pelo Janio de
Freitas, que fez boas tentativas renovadoras em sua curta passagem pela direção, e pelo
veterano Omer Mont’Alegre. Mas foi o Alberto Dines, entre 1962 e 1973, quem
consolidou e aprimorou a alta qualidade do jornal, de avassaladora influência sobre os
jornais brasileiros. Todos passaram a ser editados à imagem e semelhança do Jornal do
Brasil. Copiaram-no inclusive nos defeitos, como as chamadas-resumo da primeira
página, excêntricas duplicidades de informação que só existem na imprensa brasileira.
O zênite do Jornal do Brasil deu-se, portanto, na Era Dines. Diz-se que a
construção do novo edifício-sede na Avenida Brasil, para onde o jornal se mudou em
1973, teria inaugurado o declínio. Acredito. Outro desastre irreparável foi a iniciativa de
circular também às segundas-feiras, oferecendo a O Globo a contrapartida de circular
também aos domingos. Até ali, os jornais matutinos (como o JB) circulavam de terça a
domingo. Os vespertinos (O Globo, Última Hora e outros), de segunda a sábado. Sendo
o domingo o melhor dia em circulação e publicidade, foi fatal dividi-lo com O Globo, já
então um vespertino de grande circulação, editado por um grupo empresarial bem
estruturado e que já dispunha da emissora de televisão líder do mercado brasileiro.
Paralelamente, brotavam na paisagem os ingredientes que acabariam por afetar a
qualidade dos jornais brasileiros. A mudança da Capital talvez tenha sido o mais letal,
pois permitiu que a ditadura se prolongasse, ocasionou a degradação incontida da vida
pública, o nivelamento por baixo dos quadros políticos e de alguma forma a decadência
dos “guardiões da comunidade” que os nossos jornais deixaram de ser.
Os primeiros sintomas da enfermidade que iria matar o Jornal do Brasil surgiram
no início dos anos 1980, quando por falta de caixa deixou de cumprir acordos sindicais
com a redação. Data daquela ocasião a pouco conhecida, mas altiva reação de um dos
proprietários do JB, D. Leda Nascimento Brito, filha da falecida condessa Pereira
Carneiro, que ofereceu desfazer-se de valioso acervo de joias e objetos de arte para
honrar os compromissos do jornal com a redação. É óbvio que tal débâcle é resultado de
gerência desastrada, predadora. Semelhante à que já havia fulminado dois outros
gigantes da imprensa brasileira, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias, as mortes
mais dolorosas da minha geração.
O jornalismo de alta qualidade dos anos 50 e 60 foi mortalmente infeccionado por
legados do regime militar de 1964 que produziram quatro décadas de deformação. Um
deles, a perseguição dos intelectuais de esquerda que ceifou numerosos quadros das
redações, nelas instalando vários níveis de ressentimento. Outro, a atabalhoada
imposição do diploma universitário em jornalismo para o exercício da profissão, que
fechou a porta dos jornais a boas vocações de diferente formação e as escancarou a
diplomados de cursos precários. A censura do Ato Institucional nº 5, de dezembro de
1968, produziu notáveis momentos de resistência criativa nas redações do Jornal do
Brasil e O Estado de S. Paulo. Mas gerou graves desajustamentos que perduram até
hoje, como o execrável “jornalismo declaratório”.
O regime militar costumava justificar a tomada do poder em 31 de março de 1964,
ao derrubar o presidente da República eleito, com dois pretextos: “livrar o País da
ameaça comunista” e “acabar com a corrupção”. Pois desde os primeiros instantes
contrariou ambos objetivos. Ao prender, torturar e eliminar eventuais adversários usou a
terapia dos regimes comunistas para com os “delitos de opinião”. Ao imobilizar a
oposição blindando monumental programa de obras públicas de escassa transparência,
plantou as sementes da corrupção desenfreada que iria criar um viveiro de salteadores
de erário na vida pública brasileira, transformando-a em um exercício não de civismo,
mas de puro banditismo.
A par disso, o governo dos militares tornou-se o maior anunciante do País, com a
veiculação de propagandas institucionais, avisos, balanços, editais, “cadernos especiais”
e “projetos de marketing” originários do caudaloso organograma estatal. Inaugurava-se,
dessa forma, a era das relações promíscuas entre os veículos de comunicação e o Estado
por inteiro, aí incluídos presidência da República, ministérios, autarquias, bancos e
empresas estatais, além do próprio Congresso que também passou a gostar de distribuir
matéria paga.
Tal anomalia alastrou-se como metástase pelas esferas estaduais e municipais. Em
anos recentes, estendeu-se ao controvertido Sistema S, de péssima reputação entre os
jornalistas, mas cujas federações, sesis, sescs, senais, senacs e sebraes também se
tornaram generosos supridores de caixa da mídia.
No capítulo do repasse de dinheiro do contribuinte à mídia, nada me parece mais
afrontoso que a torrente de propaganda do BNDES e outros mamutes estatais do gênero
monopólio que, por definição, não disputam mercado.
Voltando ao tema do Herkenhoff, o aspecto mais doloroso do Jornal do Brasil é
que ele se vai quando mais se precisava dele. Nós o queríamos vivo por ser depositário
do melhor jornalismo que já se praticou no País. Das melhores ilusões dos melhores
jornalistas. Não nos conforta saber que vinha desaparecendo há muito tempo. Que
cambaleava à beira do precipício a cada edição que os jornaleiros recebiam com tristeza.
Não importa que em seus últimos momentos já não guardasse vestígio do grande
combatente que foi um dia.
Mas o enfermo que ora sepultam não é o jornal altivo e elegante do Odylo e do
Dines, que o Walter Fontoura tanto se empenhou em conservar. Não é o campo de
batalha em que o Fontes e o Touguinhó se tornaram grandes vencedores. É apenas um
legado indigente e andrajoso de coveiros antigos e controladores de ocasião.
O mal que a agonia do JB trouxe à imprensa brasileira está por ser dimensionado e
posso lhes garantir que é muito grande. Atinge a fundo a Imprensa do Rio, que fica órfã
de concorrência. Fere, com isso, o próprio O Globo, líder eventual do pedaço, órfão da
referência que impulsiona o aprimoramento.
Mas, insisto: o que está morrendo não é o troféu do Odylo e do Dines. E aqui -
com profunda reverência a esses dois maestros – lanço um olhar de saudade à cintilante
performance do Odylo, de estilo contido e preciso, que testemunhei por curto período
em fins de 1958. Adiante, vejo, também, o turbilhão do Dines em plena criação de
monumentos ao melhor do jornalismo brasileiro, como a coluna do Castello, a coluna
do Armando Nogueira, o Informe JB, o Departamento de Pesquisa, as coberturas
extensivas e a rede de correspondentes estrangeiros que a certa altura entrava em campo
com o Araujo Neto, o Luís Edgard de Andrade, o Wálder de Góes, o Sílio Boccanera, o
Noênio Spinola e outros craques de igual quilate.
O que está morrendo com o JB é a inépcia gerencial e predadora que ali se
instalou. Morre um embuste e um estelionato. Vive a brava armata da redação
Brancaleone que ultimamente sustentou a sobrevida do cadáver imperdoável.
Mataram o grande jornal, mas não levarão para o seu túmulo o jornalismo dos
sonhos do Jornal do Brasil.
Que jornalismo é esse? – poderá perguntar o jovem iniciante e me apresso em
responder.
Este é o jornalismo dos editores que não demitem a ambição da performance na
presunção de que já estejam fazendo o melhor... das pautas produzidas nas redações,
não nas assessorias de imprensa autoras da tempestade de releases que obstruem as
artérias dos jornais... da reportagem expositiva e não das entrevistas ocas... que não abre
latifúndios de espaço a políticos e governantes – os grandes satãs da opinião pública...
que trata artes e espetáculos com informação crítica, sem divulgação deslumbrada... que
seja dia e noite infenso à idolatria e ao engajamento pueril... que não concede página
inteira a qualquer mequetrefe do show business, qualquer documentarista de fundo-dequintal...
que não demite a emoção... que não perde a humildade... que não cultiva a
egolatria... que observa os fundamentos cruciais do nosso ofício que começam e
terminam no interesse do leitor... que não emascula o conteúdo pelo grafismo
garroteador de designers delirantes... que valoriza a foto-reportagem, não insultando a
arte da fotografia com a publicação de bonecos em página inteira, com o aluvião de
fotos de arquivo, e a repetição da mesma foto duas, três vezes na mesma edição.
Um jornalismo, enfim, que persiga a influência social - marca dos grandes jornais –
e que não seja maciçamente rejeitado pelo leitor, como o de hoje.
Sim: o tempo acelerou a fadiga do modelo em curso nos nossos jornais, com a
brilhante exceção de Zero Hora de Porto Alegre. E do eficiente Extra aqui do Rio, um
fenômeno de sintonia com o público que se propôs atingir. Um admirável jornal popular
criado pelo Eucimar de Oliveira e o Renato Maurício Prado, ambos da mesma cepa do
Oldemário, do Fontes e do Herkenhoff. Os principais jornais do país, como O Globo, a
Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, exibem, hoje, defeitos rudimentares de
fabricação. Aberrações inimagináveis quando ingressei no ofício. Tornaram-se mídia
secundária ante o jornalismo que pulsa na televisão.
Hoje, são os repórteres e editores dos jornais da televisão, não os do papel, que se
empolgam e nos servem o festim da vida. Lamentavelmente, o autoritarismo ainda
predominante na cena brasileira mantém a TV refém das concessões “a título precário”
do governo federal. Daí a presença frequente de hierarcas do poder aborrecendo o país
em horário nobre. Daí o discreto cuidado da TV por temor do Grande Irmão vigilante
em Brasília.
Ainda assim, é o Jornal Nacional, o Jornal da Band, o da Record e o Jornal do
STB que revelam o caleidoscópio multiforme, colorido e emocionante que ferve do lado
de fora das redações. Os telejornais, não os jornais de papel, são a grande vitrine do
tumulto da sociedade em movimento. Os telejornais são produzidos por equipes que não
se conformam em desconhecer o que “está rolando”. Saem às ruas. Perguntam e trazem
respostas para servir o banquete da informação que os mortais comuns adoram. Os
colegas da TV não ficam emparedados em redações envoltas na névoa opaca que flui
dos monitores. A mesma névoa que impede a Geração 2000 de empunhar o bastão do
Fontes, do Oldemário e do Herkenhoff.
A perda de qualidade começou a ser vislumbrada em fins dos anos 1980. Ganhou
impulso nos anos 1990. Ingressou no novo século com sintomas de epidemia. O
resultado é o espetacular desabamento de circulação revelado pelos relatórios mensais
do Instituto Verificador de Circulação (IVC) que venho colecionando desde 1994. Não
estamos falando de uma queda gradual, prenúncio do inexorável desaparecimento dos
jornais em papel que o avanço da tecnologia digital promete. Estamos falando do maior
fenômeno de rejeição a um produto de largo consumo de que se tem notícia (sem
trocadilho) nos mercados do Rio e de São Paulo. São perdas estonteantes. O quadro
abaixo resume o desastre de circulação ocorrido nos domingos do mês de maio,
(exemplo pinçado a esmo) conforme os números do IVC:
1994 2010
Folha de S. Paulo.......... 1.470 mil 350 mil (- 76%)
O Globo......................... 970 mil 326 mil (-68%)
O Estado de S. Paulo..... 655 mil 290 mil (-56%)
O Dia ............................ 700 mil 94 mil (-86%)
O Dia, que desde a morte de Ary Carvalho, em 2003, vem descendo a ladeira, a
ponto de ter sido vendido há pouco pelas herdeiras, é o recordista absoluto da derrocada.
Perdeu 50% de leitores entre 2007 e 2010, despencando de 10º para 18º no ranking
nacional. Pertence agora a um grupo ibérico, ora sob severo tiroteio da entidade dos
proprietários de jornais que o acusa de ferir a Constituição que limita em 30% a
participação estrangeira nas empresas brasileiras de jornais. Bobagem. Deviam
preocupar-se em banir tal limite, abrindo os jornais ao capital globalizado que pudesse
trazer algum sopro de renovação.
No capítulo de meus espantos, cabe espaço para a longa entrevista do mais alto
executivo de O Globo ao site Jornalistas & Cia, em novembro de 2007. Ali, a propósito
de exaltar as virtudes de seu jornal, o Sr. Paulo Novis proclamou que os 600 jornalistas
do Grupo Globo são “permanentemente instigados a ousar, a fugir do lugar comum (...)
e – o mais importante – com o direito de errar”.
O “direito de errar” tomado como atributo “mais importante” de uma corporação
de 600 jornalistas é algo que não pensei viver para testemunhar... Deve ser por isso que
O Globo alterna alguns momentos de bom jornalismo com outros de jornalismo
irracional. Deve ser por isso que em lugar da alma da notícia, costumam publicar a foto
dos que foram colhê-la e até a do motorista que os conduziu... Deve ser por isso que o
grande jornal que o “doutor Roberto” esculpiu com grandes craques vende menos nos
domingos de hoje que há 30 anos. Acima de 440 mil exemplares em 1980. Abaixo de
330 mil em junho de 2010.
Quem se importa?
O Globo faz muito dinheiro. Reina absoluto em um mercado sem concorrência,
embora nem assim consiga ampliar a circulação.
Nada a ver com isso, ou tudo: entre os 100 maiores jornais do mundo, não figura
um só brasileiro. O último colocado, com a média diária acima de 600 mil exemplares,
vende o dobro da Folha de S. Paulo, nosso trôpego campeão. A Folha se acha em
empenhada em uma briga de rua pelo topo do ranking nacional que costuma alternar
com o SuperNotícia, primoroso jornal-de-combate de Belo Horizonte – de Belo
Horizonte! - um terço do mercado de São Paulo.
Mas afinal, quem se importa?
Os novos donos de jornal já eram pessoas riquíssimas quando assumiram os
controles e não cessam de prosperar. Não enfrentam concorrência para valer. A Folha e
o Estado não são concorrentes, mas jornais iguais, editado por grupos diferentes.
Mesmo conteúdo, mesmo pendor por inúteis “projetos gráficos” sazonais, mesmo
apreço por políticos e governantes, mesma agenda politicamente correta e... a mesma
rejeição do leitor. Cito de memória: em outubro de 2004 a Folha me assombrou ao dar a
chegada de certa nave espacial a uma lua de Saturno em manchete da primeira página.
Uma vaga nave espacial em uma vaga lua de Saturno! O Estado deu a mesma coisa na
manchete daquele dia. Há pouco, a morte do escritor José Saramago também mereceu
manchete de primeira página da Folha.
Mas, não obstante a progressiva escassez de importância de seus jornais junto à
opinião pública, os donos possuem uma força descomunal junto aos detentores – e me
sinto tentado a dizer malfeitores do poder. Como se sabe, a grande preocupação destes
últimos é que não chegue às manchetes o mensalão da vez...
A verdade (ao menos a minha) é que nossos jornais se tornaram estranhos
produtos de dimensão, aparência e conteúdo subordinados ao gosto de quem fabrica e
não de quem consome. Daí, por certo, os espetaculares desabamentos de circulação. E,
por favor, não me falem de Internet. O Rio Grande do Sul registra um dos maiores
índices de acesso à Internet por habitante. No entanto, o campeão local de circulação -
Zero Hora - fechou junho deste ano com a mesma circulação paga de 1994. Nos
Estados Unidos, onde qualquer de seus habitantes tem acesso à Internet, a curva
descendente dos jornais é muito mais suave. Lá, o declínio começou há mais de 30 anos,
bem antes do advento da Internet. Tem origem na concorrência de numerosas emissoras
de TV a cabo que oferecem jornalismo de alta qualidade 24 horas por dia. Obviamente,
a Internet não favorece nenhum jornal em parte alguma, mas ainda não afeta
dramaticamente os jornais eficientes, como a nossa Zero Hora ou novo campeão de
circulação dos Estados Unidos, o Wall Street Journal.
Se a web estivesse “matando a imprensa”, como supõem os perdedores, não
haveria mais jornal nos EUA, na Grã-Bretanha ou na Alemanha onde a Internet
generalizada convive com os jornais de maior circulação do Ocidente.
Outro de meus modestos assombros é o desperdício de papel – o insumo mais caro
da nossa indústria – que produz a desvalorização dos jornais. Certa vez, a Folha dedicou
um caderno de 20 páginas ao sequestro de um publicitário de São Paulo. Em outra
ocasião, deu cinco páginas para o lançamento do filme Batman II no Brasil. Em 1994, o
Jornal do Brasil publicou um Caderno de 10 páginas – 10 páginas! - sobre certo
“abraço na Candelária”, promovido por intelectuais de Ipanema. Em um domingo de
junho de 2004, o JB dedicou um caderno de 12 páginas aos 60 anos de Chico Buarque.
Dias depois, O Globo prestou tributo semelhante ao aniversário do talentoso compositor
em um caderno de 10 páginas. Dez páginas, por baixo são 50 gramas. Multiplicadas por
uma tiragem, digamos, de 400 mil exemplares, tem-se que os 60 anos do Chico Buarque
custaram a O Globo 20 toneladas de papel ou sejam: 12 mil dólares. Sem falar nas 1000
árvores derrubadas...
Não se discute aqui o valor do artista, mas o registro de seu aniversário beirar a
vassalagem. Afinal, alguém saudável e rico como o Chico Buarque chegar a 60 anos
não é fato incomum. Por isso, não é notícia (sinônimo de fatos incomuns). Cadernos de
10, 12 páginas para alguém que faça 60 anos, nem que o sexagenário fosse Mozart. Ou
Einstein...
Em agosto de 2004, O Globo publicou um caderno de 16 páginas sobre os 50 anos
da morte de Getúlio Vargas, ocupando duas páginas – a capa e a contracapa – com
apenas duas palavras - Getúlio Vargas – aplicadas sobre uma foto obscura de multidão.
Por serem tão distantes do leitor e tão excêntricos, para usar uma palavra
antiquada, os jornais do Rio e de São Paulo são consumidos hoje mais pela inércia, ou o
interesse nos classificados que pela atração. Alimentam a curiosidade geral pela
informação. Mas despiram a legenda de Robin Hood (“defensor dos fracos e
oprimidos”) que traziam do gênesis. Não se preocupam muito em ajudar o leitor a
solucionar as necessidades de sobreviver e prosperar. Por isso, desapareceu a relação
afetiva entre o produto e o consumidor.
Em tempos recentes, no Rio e em São Paulo entrou-se pela suposição de que fazer
um jornal requer quatro providências: (1) encomendar um “projeto gráfico”; (2)
comprar conteúdo em agências de notícia e acolher matérias das assessorias de
imprensa; (3) encher a redação de uma galera de principiantes de baixo custo; e (4)
entregar uma coluna a lobistas de reputação duvidosa junto ao distinto público, mas de
bom trânsito nos obscuros subterrâneos do poder. No todo ou em parte, foi o modelo
adotada pelo Jornal do Brasil nos últimos cinco ou seis anos. Deu no que deu.
Bem!
Lamento a extensão do discurso, mas precisei fazê-lo pelas saudades do Odylo, do
Fontes, do Oldemário e do jornalismo que os consagrou. Pelo muito que se deve ao
Dines, de quem costumo divergir, especialmente em política externa, mas que será para
sempre o grande escultor de jornais da minha geração. Precisei fazê-lo, também, pela
jornada apaixonada e arquejante do Alfredo Herkenhoff. Mas o fiz por mim mesmo. Por
minha vã esperança de que em um futuro qualquer, no papel ou On-Line, ressurjam o
bom jornalismo e os grandes jornais do Brasil que estão morrendo antes. Porque dos
que ficaram, o leitor já percebeu que pode passar sem eles.
_________________________
* Nilo Dante, em mais de 50 anos de profissão, trabalhou em 10 jornais e quatro revistas semanais do Rio. Foi diretor de redação dos jornais Tribuna da Imprensa, Diário de Notícias, Última Hora, Jornal do Commercio e Jornal do Brasil. Foi o secretário de Redação do Correio da Manhã e correspondente internacional de O Globo nos anos 60. Trabalhou pela primeira vez no JB em 1958, levado por Odylo Costa filho. Voltou em fevereiro de 2002, trazido por Ricardo Boechat e dirigiu a redação de agosto de 2002 a junho de 2003
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